INTRODUÇÃO DO LIVRO O ESPÍRITO DA
LITURGIA;- F. A. RIBEIRO.
GUARDINI PÕE EM EVIDÊNCIA AS
DIFICULDADES que o homem encontra na liturgia. A idade moderna evoluiu durante
séculos num espírito oposto, até atingir esse desconhecimento, esse
desinteresse absoluto pela vida sacral da igreja é o que sucede entre nós.
Nascemos em plena (era barroca). A descoberta e colonização do BRASIL foi uma
ruptura geográfica e cultural que contribuiu fortemente para desviar a
religiosidade do nosso povo do genuíno espírito da igreja. Aqui, vai-se á missa
muitas vezes para cumprir uma obrigação, ou por costume ou rotina, sem o menor
entusiasmo. Muitas pessoas, muitos intelectuais de valor simpatizam com o
catolicismo mas só vêm nele o lado exterior, a sua ação civilizadora e
cultural, a doutrina social das encíclicas – A FISIONOMIA PSICOLÓGICA MARCANTE
DE ALGUNS SANTOS. E os espíritos finos nunca vão além dessa vaga simpatia,
quando não da pura indiferença, se a graça não lhes faz ver a face imaculada da
ESPOSA, oculta por um devocionismo alheado da liturgia católica, ou por uma
arte sacra impregnada de mau gosto.
Quando cai o véu de mediocridade,
então toda a vida humana, todo o universo aparece como uma grandiosa LITURGIA,
na qual a graça da SANTÍSSIMA TRINDADE transborda sobre as criaturas,
transfigurando tudo na realidade do MISTÉRIO desejado por DEUS desde todo o
sempre;- que pelo FILHO nós nos tornássemos seus filhos e pelo ESPÍRITO
pudéssemos chamá-lo de PAI. E o COSMOS resplandece na igreja, que é a cidade
dos céus, para a recriação do universo e para que nela todas as fases de nossa
existência, todos os trabalhos, dores e alegrias de cada dia, tudo seja
assumido pela graça divina e suba para o PAI num grande culto da criação
inteira.
Primeira
parte de uma catequese ;- A ORAÇÃO LITÚRGICA – diz um velho axioma teológico
que a natureza e a graça nada fazem sem razão de ser. NATUREZA E GRAÇA tem suas
leis próprias. A saúde, o crescimento, o desenvolvimento de nossa vida
espiritual, tanto cultural como sobrenatural, estão submetidos a condições bem
definidas. Pode-se transgredir essas leis em certos casos especiais, quando uma
forte emoção, uma aflição da alma, uma circunstância especial qualquer
legitimam ou desculpam essa transgressão. Nem sempre porém isso se dá sem
perigo. Assim como a vida do corpo se atrofia ou é afetada quando violamos as
condições fundamentais de seu desenvolvimento, o mesmo acontece com a vida do
espírito e da religião, que periclita e perde a sua frescura, força e unidade.
O que acima se disse aplica-se
particularmente á vida espiritual regular de uma comunidade. Na vida do
individuo o excepcional tem um campo de ação muito mais vasto. Mas quando se
trata de um grande número de pessoas reunidas, desde que se leva em conta o
conjunto de instituições, práticas e orações que regula de modo permanente a
piedade coletiva, a observância das leis fundamentais de uma vida sã do
espírito, natural e sobrenatural, torna-se um problema existencial. Pois agora
não se trata de modalidades da atitude espiritual da criatura em face de DEUS,
mas de entidades estáveis exercendo de modo permanente a sua influência sobre a
alma. Essas entidades não tem por fim exprimir estados da alma particulares,
mas correspondem mais á existência normal de cada dia. Exprimem não a vida interior
de determinada pessoa, com o seu temperamento peculiar, mas a vida interior de
uma comunidade formada dos mais diversos elementos espirituais. Assim é fácil
perceber que qualquer falha inicial se desenvolverá irresistivelmente na alma.
A princípio essa falha poderá conservar-se encoberta pelas emoções, pelas
necessidades morais, pelas circunstâncias especiais e particulares que tenham
originado a atitude espiritual em questão. Mas desde que tais circunstâncias de
tempo e lugar desaparecem – desde que o estado da alma regular se restabelece,
também aparecerá, crescerá e se desenvolverá em profundidade e amplitude a
falha inicial.
Essas condições básicas mostram-se
com a maior clareza sempre que a vida religiosa de uma grande comunidade se
desenvolveu de modo contínuo através de um largo espaço de tempo. As leis
essenciais tiveram ocasião de manifestar nela todos os seus eleitos. Na
existência em comum de pessoas de temperamentos, de origem social e ás vezes de
raça diversa, e através períodos históricos diferentes, tudo quanto havia de
particular e acidental desapareceu, ficando em relevo apenas o essencial e o
universal. A atitude espiritual, cristalizada pelo tempo, tornou-se assim
objetiva. A manifestação definitiva desse cânon objetivo de vida espiritual é a
LITURGIA DA IGREJA CATÓLICA. Ela pode desenvolver-se, universalmente, de acordo
com as condições de tempo, de lugar, e de todas, as formas de cultura humana.
Assim ela é a melhor mestra da VIA ORDINÁRIA, de ordem essencial da piedade
coletiva.
Precisemos o significado de
liturgia;- o que é mister focalizar antes de mais nada, é a relação entre ela e
a vida espiritual não litúrgica. O fim primordial e peculiar da liturgia não é
o culto prestado a DEUS pelo indivíduo. Ela não procura nem a edificação, nem o
despertar espiritual, nem a formação interior, do indivíduo como indivíduo. Não
é ele que é o sujeito da oração e da ação litúrgica. Não é também a simples
soma de um grande número de fiéis que ela nos apresenta numa igreja como
expressão material da unidade da paróquia no tempo, no espaço e no sentimento. O sujeito da liturgia é a união da comunidade
cristã como tal, algo mais que a simples soma dos indivíduos, é a IGREJA.
A liturgia é o culto público e oficial da
IGREJA, exercido e regulado por ministros escolhidos para esse fim, os
sacerdotes. Nela DEUS é cultuado através da unidade coletiva espiritual como
tal e esta por sua vez se estrutura nesse culto. É importante compreender esta
essência objetiva da liturgia. Pois justamente aqui o conceito católico do
culto coletivo diverge nitidamente do conceito protestante, que se refere
sobretudo ao indivíduo. É precisamente na integração de seu ser no seio de uma
unidade mais alta, que o crente encontrará a libertação e a formação interior.
É o que decorre logicamente da natureza profunda do homem, ao mesmo tempo
individual e social.
Ao lado das formas de piedade de uma
objetividade estrita, há outras em que o elemento pessoal é mais acentuado.
Tais são as práticas populares de devoção, por exemplo os cânticos religiosos,
em vernáculo, as devoções com um fim particular, ou de uso local ou de uma
época. Trazem bem nítida a marca de uma região ou uma época determinada e se
apresentam como uma expressão imediata das condições peculiares da comunidade. Ainda
que mais universais e coletivas do que a oração estritamente individual, elas
permanecem não obstante mais particulares que a oração da IGREJA, a litúrgica.
Nessas formas populares da piedade afirma-se muito mais fortemente o sentido de
edificação particular. É por isso que as formas e as leis da vida litúrgica
nunca poderão servir de cânon absoluto á oração extra litúrgica. Nunca se
poderá ter a pretensão de erigir a liturgia em cânon exclusivo da vida piedosa.
Isso seria desconhecer as necessidades espirituais do povo fiel. Ao contrário,
ao lado da vida litúrgica a devoção popular deve sempre permanecer, afirmar-se
e desenvolver-se livremente, conforme os caracteres históricos raciais,
sociais, e, locais em questão. Nada mais errado que sacrificar-se ou querer á
força adaptar á liturgia as formas infinitamente preciosas da espiritualidade
popular. A despeito dos objetivos particulares da liturgia e da piedade
popular, a primazia deve ser concedida ao culto litúrgico. A liturgia é e deve
ser a (Lex orandi), - a oração não litúrgica deverá sempre regrar-se por ela,
renovar-se nela, se desejar permanecer vital. De certo não se pode dizer que a
liturgia está para a oração popular como dogma para a fé individual, mas tudo
se passa como se assim fosse. Em face da liturgia as demais formas de vida
espiritual reconhecerão mais facilmente os seus desvios, podendo com mais
segurança regressar á VIA ORDINARIA. As necessidades espirituais dos lugares e
das épocas, flutuantes e variáveis, hão de sempre traduzir-se espontaneamente
na devoção popular;- entretanto é a liturgia que, sempre e em toda a parte,
refletirá cristalinamente as leis fundamentais, genuínas e imutáveis da sã
piedade.
Neste ensaio, procurar-se-á
justamente estabelecer algumas dessas leis. Um ensaio apenas, pois os seus
resultados não pretendem ser, de qualquer modo, definitivos ou completos. A
liturgia mostra-nos antes de mais nada que a vida de oração da coletividade tem
por suporte o pensamento. Suas orações são dominadas e vivificadas pelo dogma. Quem
ainda não conhece a oração litúrgica, toma-a muitas vezes por engenhosas
fórmulas da teologia, até perceber a abundância de emoção interior dessas
fórmulas cristalinas. É o que se dá com as orações das missas de domingo. Onde
o fluxo da oração litúrgica se expande com maior riqueza, é sempre dirigido e
dominado por uma formulação clara e límpida.
A missa e o breviário compõem-se de
trechos das ESCRITURAS e das obras dos PADRES e nos obrigam a um constante
trabalho de pensamento. Tais leituras são muitas vezes intercaladas de
elementos de oração de espécie particular (responsórios), durante os quais o
que foi lido e ouvido tem ocasião de ressoar na alma e de descer ao coração. A
LEX ORANDI, a liturgia, é ao mesmo tempo
LEX CREDENDI, lei da fé, por intermédio das velhas sentenças. Está totalmente
penetrada do tesouro da verdade da revelação. Isto não quer dizer que coração e
sentimento não tenham importância na vida de oração. A oração é por certo uma
elevação do sentimento a DEUS. mas o sentimento deve ser guiado, amparado,
clarificado pelo pensamento.
Há casos particulares em que é possível a
fixação e a permanência num movimento elementar do coração – nascido espontaneamente
ou posto em evidência por um impulso feliz. Todavia um tipo de oração que se
repete muitas vezes deve levar em conta a diferença dos estados da alma, pois
um dia nunca é igual a outro. Se o conteúdo desse tipo de oração é de ordem
sentimental, então ele se levará dum estado de espírito particular, pois de
todos os nossos elementos psíquicos é o sentimento o que mai tende a
individualizar-se. Uma oração como essa deve portanto estar até certo ponto de
acordo com o estado da alma de onde ela nasceu primitivamente, e o estado da
alma atual daquela que ora. Senão ela, ou não é utilizável, ou acaba por
falsear o sentimento.
O que se evidencia quando nos
lembramos que ela deve servir aos temperamentos mais diversos. Para que uma
oração coletiva possa ser útil, é necessário que ela se estruture num
pensamento dogmático límpido e rico. Somente desse modo poderá servir a uma
comunidade composta de temperamentos variados e na qual vibram as correntes
emotivas mais diversas. Da mesma forma só o pensamento assegura a saúde da vida
espiritual. só é boa a oração que vem da verdade. O que não significa apenas
que ela não deve conter erros;- mas sim deve brotar da verdade total. A verdade
torna forte a oração, penetrando-a com essa energia rude, forte e vivificante
sem a qual esta amolece. O que se disse acima aplica-se á oração individual, e
com maior razão á oração do povo, que se inclina com tanta facilidade para o
sentimentalismo. O pensamento dogmático liberta-nos da servidão temperamental,
do vazio e da moleza do sentimento, dando clareza á oração e tornando-a eficaz
em nós.
Mas para preencher a sua função na
coletividade é necessário que ele incorpore á oração a verdade integral. Há na
revelação certas verdades particulares que guardam estreita afinidade com
determinados estados de espírito e determinados estados interiores. Pode-se
notar que o homem de um dado temperamento tem marcada predileção por
determinadas verdades de fé;- é o que se dá por exemplo na conversão, em que
certas verdades são o princípio animador da decisão ou, nos casos em que a
dúvida surge, elas se constituem em apoio de todo o edifício da fé. Do mesmo
modo pode-se observar que a dúvida nunca age sem método, mas escolhe entre as
verdades da fé aquelas que mais distantes se encontram do temperamento em
questão. Daí decorre que uma oração cuja base fosse apenas determinada verdade
particular, acabaria por só satisfazer os temperamentos afins com ela, e mesmo
neste caso – o desejo da verdade total sempre viria a se manifestar.
Assim seria por exemplo uma oração
que se fixasse exclusivamente na contemplação da misericórdia infinita de DEUS
e que acabaria por não satisfazer a uma vida interior terna e delicada. Essa
verdade postula o seu complemento;- a majestade e a justiça de DEUS;- é por
isso que o tipo da oração destinado á comunidade dos fiéis deve conter a
plenitude das verdades da fé. A liturgia é mestra nesse particular. Pois ela
integra na oração toda a amplidão do dogma. A liturgia não é senão a verdade
rezada. E são as seguintes as verdades fundamentais que a integram-
DEUS
em sua imensa realidade, plenitude e grandeza.
Deus
uno e DEUS trino- a criação, a sua providência e onipresença;-
o
pecado, a justiça e a redenção-
o
REDENTOR e o seu reino-
os
novíssimos. TAL É A ÚNICA VERDADE CUJA RIQUEZA É INESGOTÁVEL; A ÚNICA VERDADE
CAPAZ DE SER TUDO PARA TODOS, DE SER NOVA A CADA DIA. UMA ORAÇÃO COLETIVA NÃO
SERÁ PORTANTO FECUNDA DE UM MODO DURÁVEL SE NÃO SATISFAZER Á CONDIÇÃO DE NÃO SE
ISOLAR EM APENAS UM SETOR DA VERDADE REVELADA MAS, AO CONTRÁRIO, DE SE INCORPAR
TANTO QUANTO POSSÍVEL Á PLENITUDE DO ENSINAMENTO DIVINO. Isto é importante
sobretudo no que diz respeito ao povo, naturalmente inclinado a cultivar, com
exclusão de todas as outras, uma verdade particular que se torna como que um
hábito, uma vez experimentada e amada.
Por outro lado é evidente que a
oração não deve ser sobrecarregada a ponto de querer apresentar todos os temas
possíveis. Sem o sopro das grandes correntes a vida espiritual enfraquece,
torna-se estreita e mesquinha. A VERDADE VOS LIBERTARÁ – não apenas da servidão
do erro, mas para a infinita amplidão do reino de Deus.
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