Há tempos já os exegetas e teólogos
se perguntavam o que Paulo quis dizer no capítulo 7 da carta aos romanos;- na
primeira pessoa, Paulo conta se sente, pessoalmente. Ele não fala apenas de si
mesmo, mas em sua pessoa mostra-se algo que diz respeito ao mundo. Não entendo
minha forma de agir;- não faço o que quero, mas o que odeio...- não faço o bem,
que eu quero, mas o mal, que eu não quero. Provavelmente Paulo formulou essa
experiência pessoal sobre o pano de fundo da ética helenística, que descreveu
detalhadamente a cisão do ser humano entre corpo e alma, sentidos e razão,
paixão e virtude (veja Wilkens).
Mas Paulo coloca essa cisão num outro
nível. Para ele trata-se da oposição entre o reconhecimento da lei e a ação, em
que esta entra em conflito com a lei. Ele está convencido de que em nós, ao
lado da boa lei de Deus, há o domínio da lei do pecado. O pecado é como um
poder que nos induz a fazer algo diverso do que identificamos como bom em nossa
razão.mas quando faço o que não quero, não sou mais eu que age assim, mas os
pecados que mora em mim.
Obviamente o homem
está dividido dentro de si. No caso o EU, na psicologia junguiana, o self como
essência da pessoa não tem a força de determinar a ação. Dentro de mim há outro
poder. É o pecado, a harmartia, que mora dentro de mim. É uma força que me
obriga a falhar naquilo que eu quero. Harmartia vem de harmarto, errar, falhar,
não atingir o alvo. Para Aristóteles harmartia é a falha da virtude como alvo a
ser alcançado, devido á fraqueza, falta de habilidade, falta de conhecimento. O
pecado que mora dentro de mim provoca uma cisão. Ele impede que eu atinja o
alvo. É como um poder demoníaco que divide o homem e o impede de seguir sua
determinação a partir de Deus e a viver de acordo com sua própria razão. O que
Paulo descreve aqui é o que muitos já vivenciaram alguma vez. A pessoa não sabe
porque age diversamente do que na verdade pretende agir. Precisa reconhecer que
há dentro dela uma pressão para que não atinja o alvo de viver sua verdadeira
existência humana.
Lei e graça;- foi sobretudo Agostinho que se interessou
por esse texto de Paulo. Em seu CONFISSÕES ele também relata, na primeira
pessoa, sua experiência com a própria fragilidade. ele acha que Paulo pretende
apontar-nos a oposição entre lei e graça. A cura não é obtida pela lei, mas só
pela graça de Deus, que recebemos como presente por causa do amor de Jesus
Cristo, o que se tornou visível de forma mais clara e radical em sua morte na
cruz. Martinho Lutero traduziu a afirmação de Santo Agostinho em sua doutrina
do simul Justus et peccator. O homem é sempre ao mesmo tempo justo e pecador.
John diz que a palavra de São Paulo é a afirmação de um psicólogo profundo.
Paulo tinha conhecimento de sua sombra e acreditava que só Deus poderia
libertá-lo dela. Por isso Paulo sabia que não era só bom, mas que dentro dele
havia também outras facetas, aspectos maus e obscuros de sua alma. Ele tinha
confiança de que seria redimido pela graça e não por esforço próprio. Esta é
uma visão importante, benéfica para nós hoje também;- não é por tuas ações que merecerás o amor de Deus. Deus não te aceitará
como alguém tão claro e iluminado a ponto de conseguir ter expulsado todas as
trevas de dentro de si, mas apenas assim como tu és na verdade. Aquele que acha
poder fazer tudo o que quer, necessariamente reprime suas facetas obscuras. Sua
sombra fica cada vez maior. E ele nem percebe mais quando a coloca para fora,
na ação.
Paulo quer convidar-nos a nos
encararmos de forma realista, com nossas facetas de luz e de sombras. Só então
nossos esforços espirituais trarão frutos. Quando nos perguntamos pela
experiência que está por trás do capítulo 7 da carta aos romanos,
encontramo-nos, em nossa vida, diante da cisão entre o querer e o fazer. O ser
humano conhece o que basicamente seu coração quer, o que lhe faz bem, mas
também sabe que, apesar disso, não age de acordo. Sabe que não lhe faz bem
comer guloseimas o tempo todo. Mas, apesar de todas as recomendações, ele o
faz.
Percebeu que a meditação diária o ajuda a
iniciar o dia de outra forma. Mesmo assim ele a deixa de lado. Outro sabe
exatamente que não deve dar muita força a seu insatisfeito colega de trabalho,
porque não pode deixar-se contaminar por essa insatisfação. Mas o tempo todo
ele se surpreende pensando no colega, falando mal dele e deixando que seu
próprio humor seja destruído. Outro ainda tem consciência de que não deve
magoar o próximo. Mas as palavras que o magoam simplesmente saem de sua boca. É
como um prazer, magoar o próximo, que não pode se defender. Ele sabe que com
isso só se magoa a si mesmo. Mesmo assim ele o faz.
Muitos sofrem com essa
cisão. Há muito já a identificaram, mas não são capazes de eliminá-la. Sempre
de novo incorrem nos mesmos erros. É como uma lei da natureza, contra a qual
não podem se defender. Para Paulo o que nos leva sempre a agir de forma
diferente do que gostaríamos, no fundo do coração, é o pecado que mora em nós.
O pecado nos divide internamente. Ele elimina a unidade de pensamento e ação.
Ele divide querer e fazer, ou seja, divide nossa vontade em uma que quer o bem,
e outra que quer o mal conscientemente.
Ás vezes a vontade até nos força a agir contra a lei, a
magoar o outro, a fazer algo que não está de acordo conosco. Algumas pessoas que roubaram dizem depois
que não conseguiram agir de outra forma. Dizem que foi uma pressão que se
abateu sobre elas.
Muitas vezes são justamente as
pessoas com ideais elevados que se sentem fragmentadas internamente. Por
exemplo, uma freira sente a obrigação de viver corretamente, cumprir seus votos
dolorosamente – com perfeição. Mas de tempos em tempos ela se permite romper as
regras e dar a si mesma algo que não é permitido em sua ordem.
Quando se senta para rezar;- surge
uma grande inquietação em seu interior e ela foge da oração. Sente-se fragmentada
internamente entre essa forte exigência e a realidade. O que ela faz é
totalmente inofensivo. Mas, como exige muito de si mesma, sente-se dividida
internamente entre seu ideal e a realidade de suas ações.
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Oremos;-
Pai nosso, tu és Santo entre nós. Que tua
santidade, Senhor nosso Deus, venha o teu reino para toda a humanidade. Que teu
reino seja, entre nós, reino de paz e de justiça;- reino de amor e de
misericórdia;- reino de compreensão e de perdão.
Diariamente, ó imensurável,
ensina-nos a partilhar o pão que nos deste com fartura. Que esse pão nunca
falte na mesa das criaturas humanas, sobretudo de teus pobres, socialmente,
abandonados. Liberta-nos do poder da ambição e da tendência para a acumulação,
para que sejamos mais humanos e espirituais. Hoje e sempre, inspira-nos para
vivermos o espírito de comunhão e participação, a fim de que possamos cooperar
na construção do teu reino, onde todos vivam em plena harmonia uns com os
outros. Amém!
Frei Anízio Freire.
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