quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Eu Faço o que quero;- Anselm Grün - 2


 
 

            Duas personalidades do eu;- a psicologia retomou a temática de São Paulo sobre a divisão interna com diversas variações. Não retomou apenas a temática da sombra, que trataremos adiante, mas também a temática da divisão interna em duas personalidades do eu. fala-se muito de personalidades múltiplas ou duplas. O que se quer dizer com isso é que a pessoa está dividida em diversos eus, que estão lado a lado. Um dos eus, quer ser bom e em seu comportamento persegue ideais morais, mas o outro eu só faz o mal. Muitas vezes esses dois eus, estão totalmente separados um do outro. Robertt Jay Lifton descreveu o fenômeno da duplicação, da divisão do eu em duas totalidades funcionais, no exemplo dos médicos kz. O médico kz desenvolveu um eu kz que lhe permitiu colaborar na obra cruel de morte e destruição dos judeos. Mas ao mesmo tempo ele precisou de seu eu antigo, para continuar vendo a si mesmo como ser humano, médico, marido e pai. A ruptura em dois eus de funcionamento independente permitiu ao médico que ele matasse sem sentimentos de culpa. Seu eu burguês atribuiu a seu eu kz o serviço sujo.

            Encontramos essa duplicidade em muitos terroristas, grupos de mafiosos e bandos de jovens. Por exemplo;- o chefão da máfia ou o líder de um esquadrão da morte, que ordena friamente o assassinato de um rival (ou o executa ele mesmo) e mesmo assim continua sendo esposo e pai devotado – e naturalmente também indo á igreja. Lifton fala de um pacto com o demônio, firmado por essas pessoas. A temática do pacto com o demônio surge em muitos contos de fadas. E na literatura e no folclore encontramos sempre de novo a temática do duplo, do sósia. Aparentemente existe a tendência das pessoas de se venderem ao poder do pecado, para partilhá-lo e usar esse poder do mal sobre os outros. Mas, como mostram todos esses contos de fadas, a pessoa que firma um pacto com o demônio e serve ás forças do mal acaba sempre no inferno da própria fragmentação. E o sósia vai finalmente matar seu contraeu, como no famoso filme O ESTUDANTE DE PRAGA, que OTTO RANK, um contemporâneo de Sigmund Freud, analisou do ponto de vista psicológico em seu livro DER DOPPELGÄNGER ( sósia).

            Certamente Paulo não tem em vista nenhum pacto com o demônio. Mas ele fala do poder do pecado, que pode dividir nosso eu. A pergunta é, como podemos sair dessa cisão. Paulo coloca a pergunta opressiva. Eu ser humano, infeliz! Quem me salvará deste corpo destinado á morte? Ele mesmo dá a resposta;- graças á Deus através de Jesus Cristo, Nosso Senhor! Mas como posso entender que Cristo deve curar-me da fragmentação interna? Será que ele me dá forças para fazer aquilo que eu quero? Ele me libertará do poder do pecado? Para mim, a resposta de São Paulo situa-se num duplo caminho. O primeiro caminho consiste em juntar os dois eus, muitas vezes separados e colocados lado a lado, e iniciar um diálogo entre eles. Paulo já abriu esse diálogo em seu texto. Traz os dois eus para uma conversa. Isso evita que separemos o eu bom e moral do eu mau e imoral. Ele relativiza nosso eu bom.

            A visão sobre Cristo;- de acordo com Paulo, o segundo caminho em apresentar minha fragmentação a Cristo, ampliando o diálogo entre os dois eus para que se torne uma conversa a três, incluindo Jesus Cristo. Diante de Jesus eu posso assumir minha fragmentação sem me dilacerar em sentimentos de culpa, e sem me colocar sob uma pressão tal que precise matar o eu mau sob qualquer circunstância. Paulo acredita que a visão sobre Jesus Cristo me leva a meu ser verdadeiro e a minha totalidade. Quando olho apenas para minha fragmentação não me liberto dela, por mais que eu me esforce. Não conseguirei fazer tudo o que identifico como correto apenas com minha vontade. Também não posso utilizar Cristo como o manancial de força que me dá a energia necessária para superar a divisão. Posso apenas olhar para Jesus através de minha fragmentação, posso apresentar-lhe minha divisão. Então percebo, no meio dessa divisão, que posso ser como sou, inclusive com meus lados sombrios e minha incapacidade de fazer o bem.

            O olhar de Jesus me leva a mim mesmo, a minha verdadeira essência pessoal. Então eu consigo vivenciar a totalidade. Pois o amor de Cristo engloba os dois lados que existem em mim;- o correto e o pecador, aquele que reconheceu a lei como boa, e aquele que constantemente incorre no pecado e age contra a lei.

            Quanto mais eu luto contra a minha fragmentação, tanto menos coisas consigo alcançar. E, ao contrário, quando me coloco frontalmente contra minha cisão interna, desperto uma força contrária tão grande que nem consigo lidar com ela. Conheço isso por experiência própria. Muita vezes pensei que num momento qualquer poderia superar todos os meus erros. Aborrecia-me por incorrer sempre nos antigos erros. Após cada recaída eu resolvia ser mais conseqüente, refletir melhor antecipadamente para saber quando eu poderia correr o risco de repetir o erro. Isso provocou certo efeito em mim, na direção de uma melhoria;- mesmo assim eu caía sempre de novo na armadilha. E então eu me aborrecia novamente comigo mesmo. Culpei a mim mesmo, rejeitei a mim mesmo e com isso aumentei mais ainda a cisão.

            Só quando eu me apresentei a Deus, com toda a minha impotência de superar a cisão com minhas próprias forças, senti de repente uma enorme e profunda paz interior. Posso apresentar-me a Cristo como sou, verdadeiramente. Sou totalmente amado por ele, totalmente aceito. Isso me liberta da fragmentação interna. De repente sinto uma grande clareza interna e uma forte harmonia comigo mesmo. Posso me deixar cair nos braços benevolentes de Deus, e sinto nisso toda a minha totalidade, minha cura, o fim da fragmentação. A visão sobre Cristo não pode implicar num desvio de nosso olhar de nossas facetas sombrias. Senão a fé seria usada de forma indevida, para fugir á própria verdade, Paulo nos estimula, com suas palavras, a nos colocarmos diante de nossa própria verdade. Só quando apresentamos nossa verdade a Cristo, podemos reconciliar-nos lentamente com todas as facetas que não nos agradam, como nossa impotência, nossa incapacidade de fazer o bem, nossas facetas sombrias.

            Não só na espiritualidade da nova era, mas também em alguns círculos cristãos, dissemina-se hoje amplamente a idéia de negar ou de transpor a sombra. Na euforia pela iluminação e pela experiência divina acham que não precisamos encarar nossas facetas obscuras. Imagina-se que elas tenham sido eliminadas definitivamente por Cristo. No movimento da nova era (tenta-se insistentemente convencer o buscador de que, com o mestre adequado e a prática correta, ele poderá chegar diretamente aos mais elevados níveis de consciência sem precisar primeiro confrontar-se com suas pequenas e feias fraquezas, e seus crimes. Mas hoje podemos ver que nesses movimentos a sombra está surgindo com bastante evidência.

            Os gurus vão caindo uns após os outros de seus pedestais, porque suas fraquezas humanas vão surgindo de forma retumbante. Alguns mestres perfeitos são famosos por seus acessos de raiva ou por sua conduta autoritária. Nos últimos anos alguns supergurus castos tornaram-se notícia na imprensa por causa de suas relações sexuais secretas com discípulas. Paulo nos adverte contra um desejo um tanto apressado de iluminação e de experiência crística. Ele sabe que muitas vezes não faz o que quer, apesar de sua proximidade com Cristo. Mesmo após a conversão a sombra ainda permanece ativa. Ás vezes as pessoas que vivenciaram uma conversão por meio de um movimento espiritual querem rapidamente deixar para trás sua história de vida. Mas isso não leva á verdadeira transformação. É bem mais provável que em seu caminho espiritual elas carreguem consigo os antigos padrões.

            Uma mulher que foi humilhada pelo pai encontra uma vez um sacerdote que também a humilha. O padrão da atribuição da culpa a nós mesmos, que utilizamos quando crianças para nos protegermos do castigo de nossos pais, introduz-se na ação espiritual.

            Nós nos dilaceramos com sentimentos de culpa. A falta de autoconfiança determina também a relação com o acompanhante espiritual. A atenção é toda nele, e não se escutam os próprios sentimentos. Ou então a falta de autoconfiança da infância é substituída por uma exagerada consciência de missão, na qual nos colocamos acima de todos os outros apenas porque pertencemos aos nossos cristãos convictos. As sóbrias frases de São Paulo pretendem evitar que vejamos nossa conversão e nossa redenção de forma otimista demais, como se não tivéssemos mais nada a ver com nossa história de vida anterior.

            Só quando trazemos nossa própria história, com todas as nossas mágoas e feridas, a nossa relação com Cristo, é que ele poderá curar-nos de nossa cisão, na qual continuamos imersos mesmo depois de intensas experiências divinas e extraordinárias vivências espirituais.    

 

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Quando tudo parecer perdido;- quando tudo se visibiliza apenas um mar de injustiça, violência, crime e calamidade, quando todas as razões para esperar estiverem esgotadas, importa crer que o perdão é possível. Mesmo que não encontremos mais em nós sua fonte.

            Mesmo que estejamos ressequidos de todo amor que já não experimentamos e no qual não mais cremos. Importa esperar que, justamente por isso, existe ALGUÉM que tem poder para perdoar, para recriar, para dos ossos secos fazer nova vida;-

                        Do deserto, jardim, e, face a face com a morte, coragem nova para viver mais plenamente. Alguém que é fonte de todo perdão e, portanto a paz verdadeira.

 

                        Maria Clara Lucchetti Bingemer – teóloga.

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